Descobrindo o "eu"

Pouca reflexão fazemos da nossa vida para percebermos nela a unidade narrativa que ela é: somos todos um livro cujas páginas são escritas às várias mãos, de amigos e inimigos, de familiares e colegas, de trabalhos e escolas, de interesses sociais e amores, e uma parte disto é o que poderíamos chamar do eu, que anda muitas vezes trancafiado nas profundezas de seu próprio ser só engolindo os seres de outros seres, de outros eus. É verdade que o caminho de descoberta de si não se passa pela ruptura com amigos, inimigos, família, com trabalhos, nada disto; se passa pelo seguir exatamente neste caminho e absorvendo o que nós mesmos vimos e encontramos dentro de nós pelo espelho da realidade exterior. O mundo se divide em interior e exterior, o interior é o próprio eu numa matéria-prima potencial o tempo todo trabalhada e retrabalhada, nunca esgotada em si; o exterior é matéria-prima para o interior e ao mesmo tempo é o seu agente formulador, o progenitor do eu, mas não isoladamente. Existe dentro de nós mesmos e no exterior dois agentes atuantes: o eu dos seres externos que age sobre nós, muitas vezes implacavelmente; e o nosso próprio eu que age perante o conhecimento ou ignorância desta imensa realidade que nos rodeia. O que faremos com o que sabemos? Isto formulará o nosso eu nesta matéria-prima incandescente como um tição e maleável como o vento que é o interior de nós mesmos. Somente absorver o que vem de fora não fará bem ao eu, é necessário absorver formulando e transformando dentro de si em algo que permita o próprio eu agir na sua realidade, exterior. É nesta tensão entre absorver, formular e agir que encontramos os elementos de nossa unidade narrativa, sabemos contar uma história para nós mesmos, do nosso eu no mundo em que todos vivem.

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