Filosofia da Tatuagem
Antes de começar a abordar a nossa alçada temática, queria explicitar o palavreado "filosófico" tomado de empréstimo. Filosofia é Amizade com a Sabedoria, e como tal, não é ela, mas é amizade, ou seja, é profunda relação íntima que se estabelece com a verdade de algo, assim, o filósofo é amigo do saber, mas não de nenhum saber particular, mas do saber sábio; das verdades superiores que dizem respeito ao funcionamento da realidade das coisas e de suas relações intrínsecas e extrínsecas.
Se bem podemos investigar a verdade subentendida no seio do fenômeno moderno das tatuagens, devemos mapeá-lo historicamente em que se consiste este fenômeno para chegarmos à compreensão:
A tatuagem é um signo impresso sobre a pele do ser humano, com finalidade religiosa e ritualística, e como tal, pretende subentender uma verdade ora intrínseca, ora extrínseca, ou seja, que faz parte do interior da alma, ou que lhe externa uma relação que pela pessoa tem como importância simbolizada. É assim tendo a pessoa consciência disto ou não, de vaidade ou sem ela.
Em diversas culturas, por exemplo, podemos notar que a tatuagem é uma afirmação de uma relação, muitas vezes de maneira legítima. Muitos desses signos remetem a um exoterismo do usuário para com o simbolizado, o que faz a tatuagem ser uma marca evidente de sua relação ao simbolizado.
A cultura da tatuagem esteve presente sobretudo nas culturas pré-cristãs ou alheias a ela, no cristianismo mesmo não teve uma tradição de marcar a pele com tatuagens, no Judaísmo, porém, teve, longe de ser tatuagem, a circuncisão, que trazia uma marca evidente de uma relação religiosa com a aliança abraâmica. Na cultura japonesa, os signos mascarados em rostos implicava uma imagem de má ou boa sorte, de ideal de beleza ou outra herança mítica mais particular de um clã e etc. No cristianismo, o mais próximo de uma relação religiosa em signos se deu com a iconografia, arquitetura, artes liberais, mas todas elas como peças acessórias da devoção, o que seria mais íntimo e ritualístico seriam os sacramentos, que deixam sinais visíveis no fiel, embora estes sinais não sejam evidentes sobre o corpo, a permanência do símbolo é-lhe estritamente curta no fiel. Na cultura indígena, as tatuagens são, em geral, preparação ritualística para algo, como guerra, comunhão da aldeia, casamento ou colheita, enfim, algo da rotina da aldeia e que estabelece o seu vínculo espiritual com a coisa a ser feita. Analogias podem ser encontradas em praticamente todas as tribos e civilizações antigas, em que as tatuagens são símbolos religiosos por excelência, e são marca do indivíduo com o espírito, ou pelo menos o que pensa ser, ou ainda, que deveria ser.
Na era contemporânea, com o advento do subjetivismo psíquico e religioso, o que seria quase uma redundância de termos, a tatuagem evoluiu para um nível igualmente subjetivo da psique e da religiosidade do sujeito, quer dizer, ela já não é mais um símbolo objetivo de algo, e sim um igualmente subjetivo do ser. Cada pessoa que deseja marcar o seu corpo, o faz buscando uma relação pessoal e intrínseca de seu eu subjetivo com o símbolo. Isto explica o porquê haver inúmeras formas de tatuagens hoje em dia, todas personalíssimas, remetendo a ideias flutuantes e muitas vezes desconexas com a própria pessoa. A simples ideia temporária e trivial pode ser motivo de marcar o corpo. Ora, isto nos remete a uma gravidade não de valores subjetivos, mas objetivos; porque marcar sobre a pele, quer dizer marcar sobre o próprio "eu" o simbolizado. O problema é que grande parte das pessoas que marcam a sua pele com um 'selo definitivo de um eu sacramental', perante a eternidade de um eu que elas julgam transcendente, tendo o símbolo como intermédio entre o temporal e o eterno, paradoxalmente ignora a religiosidade do próprio símbolo, relegando-o a um ato fortuito e piegas, que sequer corresponde ao desejo que o principiara, isto é, o motivo que levou a marcar o corpo, dando-lhe um caráter definitivo na eternidade, não quis marcá-lo com esta finalidade eterna, mas apenas o deesejo piegas. No fundo, entretanto, está o desejo de se marcar eternamente através de um símbolo, se não real, virtualmente. Marca-se em definitivo, de razão fortuita e piegas, cujo conteúdo se fará esquecer noutro tempo, ignorá-lo-á ou arrepender-se-á dele tão logo mude de ideia conforme a maturidade deste "eu". Obviamente que o desejo de se marcar por motivos subjetivistas, de ordem psíquica e religiosa nestes nossos tempos, são tão mutáveis quanto a água que corre da chuva torrencial sobre o asfalto, que vem depressa e vai embora sem deixar marcas, o que esvazia o significado do próprio ato de se tatuar.
Vemos esta fortuidade das tatuagens, por exemplo, nos homens que não se contentando em expressar sua masculinidade pelo próprio corpo, enchem-no de tatuagens remetentes a um ego supra-referenciado, esbanjando uma suposta ferocidade bravia e guerreira, far-nos-ia crer, ao menos é isto o que está implícito sob a forma de cortina do ego na tatuagem, uma masculinidade heroica. Na verdade, o ego masculino que deseja transmitir uma heroicidade pelos símbolos, não deseja sê-lo realmente, e não raro, sequer sabe o que é necessário para ser um herói. Se um homem quer transmitir uma imagem masculina heroica, ele focará em três arquétipos básicos: o guerreiro, o sábio e o probo. No primeiro caso, ele vai desenvolver um corpo forte e viril, com força e resistência, com envergadura física para mostrar impetuosidade, própria do homem de guerra. No segundo caso, o homem que deseja tornar-se sábio, tornar-se-á um aprendiz daqueles que considera sábio. No terceiro caso, abraçará uma causa nobre e tornar-se-á na encarnação daqueles valores idealizados.
Na cultura contemporânea, a busca dos arquétipos do herói foi esvaziada de seu conteúdo real, e foi tomado o símbolo em si mesmo como um bem, ignorando o que ele realmente significa e implica: o homem moderno vai para a academia ficar maromba, não para ficar forte e representar a masculinidade guerreira, mas para parecer forte e parecer guerreiro, os valores intrínsecos não lhe estão presentes; vai estudar um tema e virar professor não para ser sábio realmente, mas para ser admirado como um homem de letras por exibicionismo, sua cultura é vazia de espírito; vai defender uma causa não porque acredita nela e deseja se sacrificar a ela, mas para ganhar o apoio e ser aplaudido pelo simples fato de dizer defender tal causa. O homem que se tatua, 'esbanjando masculinidade', ou desejoso de representar a beleza masculina, o faz apenas por aparência, não quer ser realmente aquilo. O homem tatuado não quer ser aquilo que marcara em seu corpo, porque para se marcar no corpo definitivamente, tem que antes ter certeza de que não apenas se deseja aquilo, como se tem aquilo em transbordo, em um estado de estupefação esporeada, que justificará o uso dos signos, porque ele mesmo é o signo. Tal homem é a encarnação heroica do guerreiro; tal homem é a representação viva do sábio; tal homem é o líder de nossa causa, nestes casos, justifica-se o uso de símbolos "tatuados" ou não para distinguir-se dos demais, porque é símbolo não de si mesmo, mas do valor que encarnou e representa aos demais, em suma, o signo ou tatuagem torna-se no sacramento vivo de uma realidade que já estava presente. Por isto, a tatuagem como mera afirmação subjetiva de um ego masculino heroico, que não deseja sê-lo e nem o é de verdade, só indica uma imaturidade do eu que não tomou posse sequer do simbolizado em seu interior. A pergunta a se fazer é: O homem tatuado de símbolos masculinos heroicos é realmente herói, e é ele mesmo símbolo vivo da masculinidade, ou tudo não passa de aparências ego supra-referenciadas?
Recapitulando, a tatuagem é símbolo religioso e sacramental que objetiva eternizar o simbolizado na pessoa por meio do símbolo. A subjetividade contemporânea esvaziou o sentido desta marca sacramental para se tornar em mero adorno vazio de substância, de propósito e responsabilidade, paradoxalmente, porém, na consciência do sujeito, fez com que houvesse disparidade entre o símbolo, o simbolizado e a pessoa que se marcou, especialmente o homem "maromba" (e as razões porque isto é mais grave no homem, ficará para uma próxima ocasião conveniente).

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