A Morte do Último Intelectual Universal Brasileiro Parte I
A Morte do Último Intelectual Universal Brasileiro
“Nós não somos a matéria que nos compõe – nós não somos aquilo que nós comemos – mas aquilo que nosso espírito criou. Olavo de Carvalho
Parte I
Os Homens notáveis nunca se prezam à mentira, os incautos desfalecem-se perante a verdade sobredita. Adoto a máxima de que Deus levanta alguns homens de tempos em tempos para salvar a civilização da sua completa ruína, como bem ensinou o Padre Sertillanges. Olavo de Carvalho é um desses homens, também inspirado por aquele, e a preocupação de escrever este trabalho é eminentemente por sua causa: pois nunca houve um brasileiro tão preocupado com o futuro do Brasil, com sua cultura, e com as consequências de suas (más) escolhas, de formar homens amantes da nação e de sua história, fazendo com que esta seja contada com honestidade e não com desejo de convencer ninguém a um movimento particular, coisa que os seus detratores, sem uma verdadeira conversão de espírito, jamais entenderão.
Uma das maiores preocupações deste grande intelectual brasileiro, um verdadeiro Philosophus brasiliensis, como ele mesmo atribuíra a outro gigante, o Mário Ferreira dos Santos[1], foi a questão da identidade nacional brasileira, que segundo ele mesmo, foi o motivo mor de uma das suas estreias na vida intelectual pública, ao discutir numa conferência nos fins dos anos de 1980 sobre a dissolução das identidades nacionais, pois este era o grande drama do Brasil, já que o país buscava uma identidade nacional, numa época em que o próprio sentido de nacionalidade já estava sendo dissolvido nas velhas nações, e de lá para cá, tal avaliação se tornou, não rara, mais uma assertiva profética sobre o Brasil: o país entra no seu bicentenário de independência com um deficit de consciência do que quer ser como país, sem conquistas universais perante o mundo; o Brasil ainda é uma história incompleta, e uma civilização pela metade[2].
Posto que nosso objetivo, aqui, é trazer ao centro de discussão o caminho que o Brasil busca em sua jornada, por uma identidade nacional que possa chamar de sua, não podemos deixar o nome daquele que, se não trouxe o status quaestionis, ao menos o deixou muito próximo ou em meio caminho andado para se continuar o estudo. Na história sociológica, três nomes possuem protagonismo por quase compreenderem a sociedade brasileira como um todo: Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e Olavo de Carvalho, outros grandes nomes surgem lateralmente ou orbitando estes três, cujos trabalhos não devem ser rebaixados, mas que não possuem a mesma envergadura abrangente. Gilberto Freyre construiu um modelo de estudo sociológico a ser seguido, ensinou a observar os mínimos detalhes da matriz social e dela extrair avaliações que escapavam aos demais, em grande medida. Olavo continuou o seu trabalho, e superando-o, é o melhor que há para compreender o que é a cultura brasileira contemporânea. Darcy Ribeiro, embora tenha dado uma visão abarcada de Brasil, ela só conseguiu firmar aquilo que era o sentimento nacional em formação já há, pelo menos, um século antes, a saber: a tríplice matriz cultural brasileira e a formação de uma nação miscigenada modelo para outras nações, modelo, não multiculturalista, mas de uma nova humanidade em formação, alicerçada, não em traços étnicos, mas em valores transcendentes[3].
Escrever sobre Olavo de Carvalho é tarefa difícil, porque é um homem de uma envergadura universal, quer dizer, alguém que ultrapassa o senso de um intelectual restrito a um tema ou especialidade de qualquer natureza, ou de sua região e idiossincrasias, para se abrir ao horizonte do conhecimento humano, com toda a sua complexidade, em colaboro universal. Dizia ele, por ocasião de comentar sua própria vida, que viveu vinte vidas, e cada uma delas daria livros, cada episódio, cada situação, cada experiência que levou às ideias e concreções de seu pensamento, não menos, e tudo isto está associado intimamente à sua filosofia. Talvez, dando um exemplo, poderíamos dizer que Olavo possuía várias facetas: o homem que comentava sobre política, sobre a cultura brasileira, sobre o problema do desenvolvimento humano e da personalidade; era o mesmo que debatia com Kant, Descartes, e conversava com Louis Lavelle, Platão, com os seus alunos; entendia o pensamento de Aristóteles nas entrelinhas, e se divertia com caçadas e palavrões debochados a ignorantes pedantes; era o mesmo que num só instante filosofava sobre a realidade do amor, das premissas científicas, sobre os problemas da sociedade medieval e que ressoam fortemente até os dias de hoje. Mas para além do Filósofo escrito, o filósofo vivente e educador, entendia o filósofo que filosofava, aquele afável que ao primeiro momento, fazia-nos duvidar de sua sabedoria e agudeza de espírito. Este Olavo, não obstante, era simples e despojado da imagem impassível do filósofo, usava, como Sócrates, de imagens simples, e que estavam à disposição de quem quisesse aprender com ele. E, porém, diante de tudo isso, não se pode dizer que eram facetas, que não um só homem em diferentes ângulos.
Olavo filosofava de modo socrático, ou seja, tomando exemplos simples que estavam ao alcance dos que o ouviam, e não somente em casa, ou quando escrevia os livros, mas ali mesmo, sentado numa cadeira ou poltrona e no conforto de sua biblioteca, sem afetação de pedantismo erudito, para alunos cujos rostos ele só conhecia alguns. Poder-se-ia dizer que sua obra-prima, o Curso Online de Filosofia, se tratava de curso imperfeito, e que não possuía a mesma força de uma academia socrática presencial, mas é ledo engano. Isto seria verdade para quem como educador não soubesse comunicar na arte do ensino o seu modo de ser e de desenvolver as ideias, criando disparidade entre o eu filósofo expositor e o eu pessoal familiar. Olavo criava o conteúdo que iria ensinar ali mesmo, durante as aulas, porque não era improviso, era ensino sendo transmitido por meio de sua personalidade, e quando digo isto, me refiro a não menos do que o modelo de construir o pensamento a ser transmitido, e que este modelo era ele mesmo, fruto da sua exposição natural do pensamento, alicerçada durante décadas de vida intelectual esmerada e burilada na profundidade do homo sapiens sapiens. Mais do que o conteúdo ou ideia transmitida, era a forma e o que estava por trás da forma; uma pessoa inteligindo questões, as quais não estava obrigada a responder e nem descobrir respostas, mas confessá-las ter e desejá-las, com paciência, no entanto. Uma questão levantada hoje, poderia ser respondida no decorrer de anos, ser retomada muito tempo depois, ou ser discutida por muito tempo, apoditicamente; mas poderia ser respondida imediatamente, com precisão geométrica, uma pergunta de aluno, contando para isso apenas com a experiência de vida trazida à luz da sinceridade. Qualquer pessoa que tivesse uma dúvida, e a tivesse respondida por Olavo, ainda que não confiasse na resposta de imediato, mais cedo ou mais tarde, levaria a chegar a mesma opinião e compreensão que ele, e foi desta forma que ele construiu sua autoridade, e não por holofotes midiáticos. Foi deste modo que Olavo foi conquistando pessoalmente cada aluno e seguidor, e esses replicaram a admiração que sentiam para outros e outros.
Mas se quisermos compreender melhor o que era o Curso Online de Filosofia, a comparo com um assunto que ele sempre repetia, mas sem idealismos, e que, creio eu, tenha sido seu ponto de partida para a criação de tal projeto.
No dizer de suas próprias palavras:
O ensino das escolas catedrais [447] aproximava-se bastante do que acontecia no círculo socrático e na academia platônica originária, onde não existia a intenção de criar uma doutrina formalizada que pudesse ser repassada impessoalmente. A importância capital da influência direta de alma para alma advém da própria circunstância social de onde se originou o círculo socrático. Sócrates não tentou começar uma discussão contra uma ideia qualquer, nem contra alguma corrente minoritária, mas focava-se naquilo que era a opinião dominante, tida como a mais respeitável e séria no meio ateniense. Hoje, aquela doxa pode nos parecer ridícula, devido aos esforços de Sócrates e Platão, mas na altura se atrevesse a desafiar aquilo corria realmente risco de morte[4].
No entanto, Olavo era Filósofo, que compreendia toda a tradição filosófica, além de ser um ser humano gentil e plácido, o que fazia de sua experiência e pensamento serem tão complexos que, ao olhar de fora, parece incompatível ser o autor de Jardim das Aflições aquele mesmo desbocado do True Outspeak, a não medir palavrões e xingamentos a personalidades notáveis da contemporaneidade brasileira, que parecia caçar briga com todos, e ao mesmo tempo desprezá-los com tal força e ímpeto, que o próprio atrito era uma educação moral[5]. Ele ainda poderia falar de um assunto chulo para divertir as gentes e, no mesmo instante, com maior profundidade de espírito, voltar-se para o diálogo com Deus e para as premissas do conhecimento humano. Essa versatilidade era possível porque ele era assim, era a sua personalidade exposta.
COF: Uma catedral medieval
Comparo o Curso Online de Filosofia, sua obra-prima, com uma catedral medieval, na medida em que ela possuía várias colunas, vários alicerces, cada vitral se abria a um horizonte de pesquisa ao qual um desavisado poderia entrar e nunca mais sair. O modelo era cíclico, quer dizer, que vez por outra os temas relevantes eram retomados, sempre sob aspectos diferentes, ao mesmo tempo que ou corrigindo ou aprofundando um aspecto latente que fora posto de passagem. Assim, o COF não criava perdidos nos estudos, possuía um programa de estudo elástico o suficiente para atender a todos os níveis de letrados, e mesmo aqueles mais experientes na pesquisa do saber, se viam imbrincados numa realidade a qual ignoravam, de tal maneira que se sentiam incapazes tais como os iletrados que se recém-chegavam.
Tal como uma catedral medieval, o COF se apresentava por fora bastante rude e agressivo, uma massa cinzenta que atrai e repulsa ao mesmo tempo, quer fosse pelas ideias que as pessoas tinham dele, quer fosse pelos assuntos políticos, burlescos e irônicos soltos em trechos isolados e popularizados pelas mídias, e como uma catedral gótica era colossal e intimidante aos olhares externos. Sua estrutura inicial é o da introdução dos princípios da vida filosófica, não era exigido dos que entravam o mesmo que aqueles que passaram cinco anos estudando sob os auspícios de sua filosofia. Por isso, a primeira fase do COF é o da formação da personalidade, sobrevivência moral na sociedade brasileira, formação do imaginário, construção de uma base gnoseológica sólida firmada em princípios morais e espirituais da busca pelo conhecimento e amor à verdade. A segunda fase é o da exposição de problemas filosóficos e disciplinas, a lógica e seus problemas, o pensamento científico, a teoria do conhecimento, ontologia e metafísica são temas abordados continuamente, ciclicamente. Numa terceira fase, se introduzia a exposição de seu pensamento sociológico e como os novos intelectuais devem lidar com a cultura brasileira, e este tema é retomado ciclicamente até o fim. Uma quarta fase se diria o recolhimento de fatos notórios da política, mídia e cultura brasileira, exposição de problemas e a construção de um modelo de análise sociológica, fundamentando vários dos princípios políticos. Em geral, é desta fase que se conhece mais o COF[6]. Mas como já dito, as fases são meramente aproximativas, em predominância de um ou mais disciplinas, mas de fato a estrutura é cíclica do início ao fim. A última fase fora inaugurada com a popularidade do COF perante a mídia, devido a eleição de um governo conservador tido por sua influência. A entrada de Jair Bolsonaro na presidência desvelou o poder que um único intelectual que povoou o Brasil com livros, pesquisas e influenciadores a reproduzir suas ideias, ou de estrangeiros ignorados pela elite esquerdista, tem. Nesta fase, contudo, é marcada por um combate forte ao projeto do COF e de problemas sociais, políticos, culturais e científicos nele abordados. Por isso, essa fase só é melhor entendida em vendo a quem e a quê o filósofo combate[7].
Olavo x Estamento burocrático
Tantas vezes foi incompreendido pelo Estamento Burocrático brasileiro, quase anulado por este, que só não o foi, por ser demasiadamente grande, esnobe aos esnobes, e indiferente a toda e qualquer crítica descabida, tomando alguns figurões públicos como símbolo da decadência humana e intelectual, por uma missão purgativa de seu trabalho, e desta purgação, impondo respeito pela verdadeira vocação intelectual em ação. Contextualizar o Brasil e o emaranhado de gato que é a política e a cultura, foi um dos seus maiores trabalhos purgativos, por assim dizer, em prol de seus milhares de alunos e milhões de influenciados por escritos, aulas, publicações, artigos diversos e debates. Desde que passara a ganhar relevância notória na influência política, elegendo um presidente, pela sua atuação intelectual e fomentando a alta cultura, especialmente conservadora, e inserindo vários nomes de destaque na literatura e bibliografia mundial, o debate cultural ganhou uma nova força centrípeta, reduzindo a esquerda ao nível de subcultura, ainda que ela fosse mesmo, e em recebendo os holofotes que até hoje é a causa de seu sobressalto. Olavo reduziu a força da esquerda e abriu a cotoveladas novos pensares em todas as áreas públicas do conhecimento humano, fomentando o debate e o surgimento de mídias alternativas.
Para tracejarmos sua influência direta na cultura brasileira, temos de ir por etapas, porque, como já disse, Olavo tinha várias facetas, o que não quer dizer personas ou personagens de si mesmo, mas aberturas de seu espírito em círculos que, não obstante, criavam um nível de compreensão de si limitado, talvez, aos partícipes destes círculos, segundo suas capacidades menores, de tal forma que, aqueles voltados a política, via o Olavo político; os antipolíticos, o Olavo à apoliteia; os antissemitas, o Olavo antissemita; os sionistas, o Olavo sionista; ou islâmico, ou católico tradicionalista, ou modernista, ou paganizado, antipatriota, patriota, individualista, estadista, capitalista, anticapitalista, e a lista de contradições, para amigos e inimigos, não cessa. Isto implica o quanto sua pessoa era, em verdade, universalista, e cuja cultura ultrapassava a de toda a combinação desses círculos menores e indissociáveis de sua personalidade.
Mas essa incompreensão custou caro, não foram poucos os processos, brigas e polêmicas, por suas ideias que lhe custaram empregos, tranquilidade em morar num lugar, ser aceito por pares da intelectualidade ou do mundo jornalístico, ser respeitado no Brasil como autoridade. Mesmo assim, o rombo na cultura brasileira fora feito, e as fendas devem ser intratáveis para os adversários. Inimigos na classe política, midiática e acadêmica se ofenderam com sua existência, mas não conseguiram lidar com suas ideias, e por isso, houve a tentativa contínua de ocultá-lo e obscurecê-lo para o povo a mercê deles, sem, no entanto, obter bom êxito, pois sua obra já está completa.
Bibliografia olaviana
Em sua vasta bibliografia publicada e ainda por publicar (o que levará anos, mesmo após este ensaio ser escrito), Olavo se destacou por fazer uma descrição da cultura moderna não só do Brasil como do Ocidente como um todo. Ele conseguiu evoluir esta análise da cultura moderna conforme deixava suas impressões já como filósofo maduro a partir da década de 1990.
A começar por A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci[8], livro em que denuncia como os modismos intelectuais do pensamento revolucionário começaram a florescer e a dominar todos os espaços destinados à opinião pública e à formação da classe falante brasileira. O intento principal da estratégia gramsciana foi criar uma onipresença da cultura comunista em que todo o povo seria adepto de seu ideal sem mesmo a perceber, a esta disputa de domínio dos espaços culturais até a homogeneidade absoluta do pensamento é o conceito de Guerra Cultural[9].
Se estende esse combate com a emblemática obra O Jardim das Aflições[10], livro de ensaios que faz um verdadeiro apanhado dos últimos dois mil anos de nossa era, mostrando as mudanças que houve de lá para cá e que desembocaram nas conferências sobre “Ética” no Museu do MASP em São Paulo, sendo este não mais do que mera apologia ao Epicurismo, ao desespero de uma vida sem sentido e cujo único propósito é a entrega ao prazer incongênito, um jardim de aflições.
E para completar a trilogia, O Imbecil Coletivo, obra dos anos de 1990 em que ele mostra a pobreza intelectual dos principais nomes que ecoavam na mídia brasileira de então, quase unanimemente esquerdista, e se imbecilizando uns aos outros por não terem pensamento realmente crítico do que viviam, mas apenas numa autoglorificação das mesmíssimas cartilhas ideológicas, e por isso mesmo a nivelarem a cultura nacional para baixo[11]. Este comportamento do imbecil coletivo se estendeu mais tarde na grande obra Cartas de um Terráqueo ao Planeta Brasil, uma coletânea dentre os seus numerosos artigos, todos eles constituindo uma verdadeira trincheira de guerra a detonar o estamento intelectual brasileiro das últimas décadas, especialmente, mas não menos que o Tucano-petista e o socialismo fabiano, abrindo este “Planeta Brasil” a um mapeamento de um panorama mais que geral; topográfico mesmo da cultura e mentalidade brasileira[12].
O rombo intelectual brasileiro foi tão intenso que Olavo quebrou um silêncio de trinta anos em que discussões sobre a Filosofia Aristotélica não eram publicadas, pelo menos em livro, no Brasil. A vergonha fez com que a USP, conhecida como a melhor universidade brasileira, tirasse da gaveta justamente uma publicação de trinta anos de sua gaveta. Aristóteles em Nova Perspectiva lança luz sobre a Teoria dos Quatro Discursos: Retórico, Dialético, Poético e Lógico-analítico, que estão presentes na obra de Aristóteles como subentendimento, ou seja, como base para os escritos dele próprio e uma chave precisa para a sua compreensão[13]. A novidade é tão grande que ela é agregada à filosofia de Olavo como parte de sua própria.
Sua obra passa ainda pela Dialética Simbólica em que examina notoriamente em ensaios teóricos a complexidade do simbolismo e a execução do trabalho intelectual[14]. A Filosofia e o seu Inverso[15] denuncia o (novo) distanciamento entre a profissão filosófica e a vida de um filósofo, tal como entendia os pais da filosofia ocidental moderna: Sócrates, Platão e Aristóteles; um problema já denunciado na República de Platão, mas que ganha novos ares na contemporaneidade.
Mas não abordaremos toda a vasta bibliografia olaviana, pois o nosso propósito é trazer como foco o seu trabalho quanto ao futuro da cultura brasileira, preocupação central de seus trabalhos, e que já era denunciado em O Futuro do Pensamento Brasileiro, em que abordaremos mais pela frente.

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