O resgate da linguagem pelos artesãos da língua
O resgate da cultura passa pelo resgate da linguagem, mas o que isto significa? Quer dizer que a aquisição de cultura é proporcional ao enriquecimento da linguagem para dar nomes às coisas. Em que consiste este enriquecimento da linguagem? Primeiro, em adquirir a riqueza contida nas palavras que já existem na sua língua, porque elas expressam um conjunto de experiências fenecentes dos tempos passados, tornando-as claríssimas e salutares ao tempo presente, amarrando-as. Segundo, pela consciência da forma de sua língua e não torná-la sonoramente caótica com termos e expressões alheias a ela.
A boa língua é uma obra de artesão, não é casual que se chama "texto", uma obra tecida de palavras que remetem um fato descrito, narrado e analisado, um enredo.
Podemos adquirir esta riqueza artística nos livros, porque neles outros artesãos da língua trabalharam com vigor para tecê-la, em chinês há um expressão que diz: "Mil martelos e cem refundições" para descrever o forçoso refinamento da língua por parte de seus melhores artesãos, pois é como um trabalho pesado na fundição de matéria bruta, que são as palavras.
O bom artesão da língua é tanto mais exitoso quando consegue fazer da sua linguagem um "amarrar-se" com a do outro, no passado e no presente. Por isso é importante a leitura, para adquirir uma tradição viva das palavras, de ontem e de hoje.
O homem do campo se envolve com as coisas do campo e desenvolve a sua fala conforme esta necessidade; o médico que fora educado no seio disciplinar da academia possui outra linguagem alheia àquele, e se ambos quisessem se comunicar com êxito, ambos teriam de saber traduzirem-se mutuamente sobre a ponte literária. Parece exagero, mas suponho a linguagem literária como arte da expressividade.
No mundo antigo, em que a maior parte das pessoas eram analfabetas e não dominavam a escrita, as línguas rapidamente se fragmentavam e dissolviam-se ao sabor dos sucessos e derrotas das nações. Foi assim que sucedeu ao Latim, a partir do momento que o Império Romano se fragmentou, ruiu também o tecido de sua unidade linguística. Em todos os idiomas neolatinos, o que podemos notar são as possibilidades de alteração dos mesmos para novas formas sonoras, estilísticas, gradualmente mais distantes umas das outras, fazendo uso distintos dos termos que não obstante tiveram a mesma origem. É verdade, porém, que o intercâmbio literário e artístico em geral fomentou uma maior aproximação entre eles.
O Latim atualmente funciona como o Chinês para o Mandarim, ou seja, é uma fonte de termos e expressões, ideias e constructos cujas possibilidades de uso são quase infinitas. O Português está, portanto, na posição do Mandarim, e de fato, o Português, como língua latina em que se carrega em grande medida a ortodoxia dela, é uma língua viva capaz de se inovar e renovar mediante o empréstimo e reimpréstimo de termos, quer fossem latinos ou de outros neolatinos, anglo-saxões e até mesmo sínicos, se lhe conviesse. Porque o Português possui a sua dinamicidade inerente, a sua própria forma de "aportuguesar as coisas", de tal modo que a sonoridade das palavras toam e se adaptam como se sempre portuguesas fossem.
Tal situação de refinamento e refundição dos empréstimos em neologismos açambarcados, só encontrei em nível semelhante no próprio Mandarim, que mesmo quando importa palavras estrangeiras, as transmutam em palavras tão sínicas como se nunca estrangeiras fossem. O mesmo ocorre em Japonês, em que não há palavra estrangeira que não possa se adaptar à nipônica morfologia, que não subsista como se sempre japonesa fosse. Tal versatilidade pode existir em muitas línguas nubícogas de palavras, porém se percebe que em outras, como o inglês, as palavras se transformam em monstros: preservando a primeira forma, mudando a pronúncia, ressignificando o conceito, criando assim palavras coringas aglutinadas por osmose ou simbiose que pouco dialogam com a forma de sua própria língua.
Mas a missão de tecer as palavras provém dos artesãos delas, tecendo-as nas suas possibilidades.
Temos a vantagem de falar português, mas temos a desvantagem de não saber tecer as palavras. Predomina a absorção de estrangeirismos, sem que se lhes busque correspondentes apropriados, quando os hão de ter, ou sem os tornar portugueses como se nunca estrangeirismos fossem. Muito menos há a preocupação de retomar o Latim como o Mandarim toma o Chinês, isto é, como fonte primária e matéria-prima para se fazer possibilidade infindável. O resgate da linguagem, creio, passa por esta consciência de tecer o ontem e o hoje pelos seus artesãos.
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